21 de setembro de 2012

Ana

Eu poderia dividir a minha vida em duas etapas: antes e depois de Ana. Embora Ana nunca tenha sido um grande amor na minha vida, ela ainda era o exemplo que eu usava para falar de sentimento. Eu não lembro dos meus caminhos antes de Ana, nada se compara ao dia em que vi a menina dos cabelos encaracolados andando de bicicleta na minha rua. Era Ana, menina-bonita-moleca-sorridente. Era Ana entrando na minha vida, simplesmente.

Lembro de quando a encontrei saindo do trabalho e conversamos sobre as primeiras emoções da nossa adolescência. Não contei a menina-bonita-moleca-sorridente que a primeira emoção que senti foi por ela.  Aliás, eu nunca contei nada a Ana. Nunca deixei explícito que ela era a minha menina, até mesmo quando a escutava contando histórias sobre o garoto dos olhos bonitos que olhou para ela. Eu não era o menino dos olhos bonitos de Ana, aliás eu nunca fui, mas ainda sim era quem seria capaz de passar uma vida inteira olhando para ela.

Até o dia em que viajei e conheci as montanhas. Coloquei a mochila nas costas e me dei ao luxo de trilhar um caminho sem rumo e sem planos depois de ter escutado de Ana que não estávamos preparados, que precisávamos conhecer a vida. Logo a menina sorridente que me transformou naquele primeiro beijo, logo a bonita que eu encostei na parede e disse tudo o que sentia, logo a boneca que se desencantou depois de um certo tempo. Aproveitei que Ana foi estudar no exterior e coloquei o pé na estrada. Fiz amizade com um louco sem dinheiro algum no bolso que queria conhecer o mundo, mas não pode chegar ao topo dele. Ele estava cansado de andar por aí com aquele vermelho extravagante fingindo ser quem ele não era. Continuei o meu percurso em direção ao meu lugar preferido na terra. Eu queria ter o mundo inteiro nas mãos para fugir do fato de Ana ter dito que eu não estava pronto. E, só até certo ponto, eu não estava mesmo. 


Se eu pudesse inventar algum tipo de verdade, eu diria que um homem só se torna homem depois que escala uma montanha. A gente aprende que é preciso continuar escalando mesmo após algumas quedas, mesmo com as dores nas pernas e uma outra série de coisas. Quando você chega ao ponto mais alto, você se torna pronto para qualquer outra montanha na vida, não importa o tamanho que ela tenha. Superando toda a dificuldade da escalada, a gente encontra uma vista linda, algo que te faz acreditar que qualquer coisa é possível nessa estrada e qualquer erro que você venha a cometer é pequeno perto da imensidão que existe para te dar a oportunidade de consertar. Naquele dia eu estava pronto para tudo. Para o bom, para ruim, para a vida e para Ana. Acho que todos nós deveríamos encontrar o nosso lugar preferido na terra, não importa onde nos encontremos.

Voltei. A transformação pessoal que tive durante todo o ano em que viajei não se compara ao minuto em que me tornei outro por não ter encontrado Ana. Ouvi dizer que ela já não era sorridente e tentei descobrir se tinha algo a ver com os problemas familiares que ela costumava disfarçar tão bem ou com o os arranhões que havia sofrido no coração. Lembro que ela carregava o mesmo sorriso quando parti. E ainda me fez prometer que eu voltaria, que não me deixaria levar pela curiosidade de outras terras, outros gostos e outros mundos. Sei que quando algumas coisas não dão certo, surgem aqueles restos de mal entendidos e se eu fui algum tipo de arranhão para Ana, tenho certeza que fui o único machucado doce daquela menina. Doce, porque é aquele que não traumatiza, que não mancha o carinho  ou o afeto, e que acontece às vezes entre duas pessoas que não sabem lidar muito bem com essa coisa de sentimentos. A gente precisa amadurecer um para o outro às vezes. É por isso que duas pessoas conseguem passar anos uma ao lado da outra e só vão se apaixonar lá na frente. É por isso que a gente toma pancada e entorta, leva "chapuletada" e endurece, se apaixona e amolece. Essa coisa de a tampa certa da panela é balela, coisa do tempo dos avós. Hoje em dia, a gente passa por uma série de experiências para aquetar alguma agonia no peito e depois vai se entortando para encaixar em outra tampa. Arrumar nossas elevações para cabermos em alguém, isso é amor pra mim também.


Acontece que a menina-bonita-moleca-sorridente virou mulher e a vida lhe pareceu algo injusto, algo pesado demais para alguém como Ana. Na minha opinião, a menina dos cabelos encaracolados que andava de bicicleta na minha rua tinha muitos medos e ninguém para se agarrar. Se eu pudesse, teria levado Ana até as montanhas. Teria ensinado a menina que mudou a minha vida, mas não pôde ser o meu grande amor, que as coisas podem ser ser pesadas assim mesmo. Mas, que a vista no final seria linda se ela encontrasse uma boa companhia para continuar andando. Alguém que fosse capaz de se encaixar às partes entortadas que a vida te deu e às endurecidas que ela te impôs. Eu poderia ser o par de Ana, eu poderia lhe dar a mão, lhe cantar aquela canção. Eu poderia tanta coisa se você tivesse deixado Ana, aliás eu poderia tanta coisa se você tivesse ficado.

É uma pena você não ver o mundo daqui de cima menina, mas acredito que você tentou chegar aonde pôde. Quando digo que você não é o meu grande amor é porque ainda não vivi todos os amores necessários para saber qual é o maior, embora tenha alguma ideia. Ninguém conseguiu chegar dentro de mim como a menina  dos cabelos encaracolados que se interessou pelo meu machucado no joelho e decidiu fazer medicina. Só Ana, mulher-linda-frágil-não-tão-mais-sorridente que se afastou e me tirou a oportunidade de estar aqui quando ela precisasse. Se você tivesse sobrevivido, eu poderia ter te trazido comigo. As coisas poderiam ser diferentes e você poderia apenas aprender que levantar no dia seguinte, mesmo sem muita vontade, é seguir em frente. Você deveria ter me aceitado quando ainda era menino Ana, simplesmente. Eu teria ficado,  sim, até se você exigisse que fosse eternamente.

"Se ela tivesse sobrevivido, poderia ter vindo para cá comigo, 
talvez eu pudesse ter dito algo a ela, ter feito com que ela se sentisse de outro jeito
Talvez eu só fizesse amor com ela e não dissesse nada."
Kerouac em  Os vagabundos Iluminados


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