27 de junho de 2012

Carta 19, entre bolhas e garrafas eu entendi o autismo


Eu não sei exatamente em que parte da minha vida eu percebi que cuidaria de você, mas lembro que sempre pedia um brinquedo para nós dois nas cartas que escrevia para o Papai Noel. Eu sei que quando a mamãe nos deixava dormindo no quarto, eu te transformava na minha conchinha. Eu tinha medo do bicho-papão sair de debaixo da cama e você era a minha proteção. Eu ficava pensando que poderia gritar: “Ei, cara, ele é o meu irmão! Olha o tamanho dele!”.
Eu também não lembro como ficamos quando o papai foi embora. Nunca vou saber o que você lembra ou entende sobre o homem mais importante das nossas vidas. Mas eu sei que você sabe o que é saudade, porque quando a mamãe demora para chegar, você abre a janela da sala e fica esperando-a aparecer. No começo eu achava que era o tédio de ficar brincando de bonecas ou vendo eu dublar aquela minha banda favorita, mas depois eu entendi que era amor. Aliás, tudo que eu sei sobre amor foi ensinado por você. E coisas sobre força, fé, resignação e coragem foram com a mamãe. Ela é o nosso exemplo e a nossa super heroína, por mais que negue a sua grandiosidade de vez em quando.


Eu li em um livro que um dos maiores sonhos dos irmãos de autistas não-verbais é vê-lo irmão falando. Eu não sei se esse dia vai chegar, mas sei que nós conseguimos entender um ao outro. Você pega no meu braço, geme, olha nos meus olhos e eu já entendo o recado, como se “te entender” fosse algo destinado a nascer comigo. E vice-versa, é a mesma coisa, muitas vezes eu sentei triste e ganhei o seu abraço ou a sua cabeça nos meus ombros porque você já sabia o que eu estava sentindo ou querendo.

Quando éramos pequenos, eu até fazia cara feia para as pessoas que te olhavam de um jeito estranho. Por ficar encarando, já deixei muita gente sem saber o que fazer por causa disso. E quando riram de você, eu briguei, fiquei brava e tirei satisfação. Para mim você sempre foi o cara que metia medo no bicho-papão dentro do quarto, e fora dele era eu quem tinha que meter medo nos bichos-papões da vida real. Nós dois cumprimos muito bem o nosso trabalho, não é? Hoje, no auge do meu 1,80 m., eles podem pensar “Ei, cara, olha o tamanho dela! É a irmã dele!”.

Sempre fomos de ficar na varanda todo final de tarde, se lembra? Mesmo sem falar, você escutava todas as minhas histórias enquanto ficava entretido com as bolhas de sabão na garrafa, o brinquedo que a mamãe inventou e que você nunca mais largou. Víamos o pôr-do-sol e o céu misturando todos os seus tons para virar noite. Dias como aqueles me faziam perceber a importância das coisas simples e sinceras. Você me ensinou a dar afeto e a valorizar as coisas pequenas. Se hoje eu gosto de estrelas e abraços, a culpa é sua.


Nunca sentei para conversar com alguém que tivesse um irmão autista, mas eu sei que esse tipo de pessoa acaba se tornando um ser humano diferente, pois autistas transformam pessoas. Acredito que você é o responsável pelas partes mais bonitas do meu jeito, do meu caráter e da minha alma. Você me abraça sempre que eu te dou banho, limpo o seu prato ou te coloco para dormir e eu acho que é a sua forma de dizer “obrigado”, mas no final das contas sou eu quem tem que agradecer.

Igor, você nunca me defendeu das crianças maldosas e nem dos namorados com defeito. Nunca pudemos sentar juntos e resolver uma questão complicada de matemática ou discutir sobre a melhor faculdade ou a profissão adequada. Mas você sempre ficava ao meu lado enquanto eu brincava de boneca, sempre assistiu filmes comigo e me ensinou a dar carinho. Com você, eu aprendi a ter sentidos, o que faz de mim um alguém sensível o bastante para reconhecer os sentimentos de outras pessoas. Crescer contigo foi aprender o significado de cada pequeno passo. Todo dia nós vivemos e ganhamos algo que vale a pena.

Nunca pude te ouvir dizer que me ama, mas eu sei que sim. Você é quem sempre ficou por perto, sem se incomodar com o que eu estava fazendo, e quem me ensinou que a gente tem sempre que entrar no mundo dos outros para entendê-los. Entrando no seu, eu me tornei alguém melhor. Apesar de você ter autismo, muitas vezes foi você quem não permitiu que eu me isolasse. E para mim, isso é amor.


Obs: esse texto foi originalmente publicado no portal Papo de Homem. Obrigada pela honra, pessoal!


Criei entrebolhasegarrafas.blogspot.com 
para quem tem irmão autista. 
Se quiser conversar, estamos por lá.

12 de junho de 2012

23h12

Era a terceira vez que ela enrolava no trabalho para pegar o ônibus no horário certo. Uma pessoa que anda sempre cansada e usa óculos escuros para esconder o rosto de sono e sem maquiagem, aproveitaria qualquer minuto para ir descansar em casa, dentro do quarto que tem a cara dela, o cheiro dela e a bagunça sempre tão inconfundível que só ela tem.

Eu só sei que essa menina cresceu ouvindo histórias que deram certo - ou até mesmo errado - por causa do acaso da vida. E acredita fielmente que um dia vai tropeçar com esses acasos que trazem sempre uma história bonita para contar. Ela tropeçou uma e perdeu. Chegou a segunda, e ela nada pode fazer, mas sorriu. Chegou a terceira, mas nada aconteceu. E mais uma vez, a garota que era meio poeta estava lá olhando o relógio e achando que poderia escrever a própria história, inventar o próprio enredo e plantar o acaso que finalmente vai fazer ela feliz.

Às vezes a gente pensa que não tem nada de errado deixar algumas coisas passarem, focar os planos ou a vida em um único objetivo e se fechar para um acaso que pode mudar o rumo dos acontecimentos ou até mesmo a uma vida inteira. A gente pensa que pode mudar o destino e decidir o que vamos encontrar no próximo ponto, mas não dá. É o destino quem decide o que vai acontecer conosco, não adianta se esforçar para pegar o mesmo ônibus, no mesmo local ou no mesmo horário. Por mais que você faça planos, a vida já planejou muitas outras coisas para você. Não confie em segundas chances, procure aproveitar as primeiras.

Foi a terceira vez que ela enrolou no trabalho para chegar na hora certa e nada adiantou. Finalmente descobriu que não pode dominar a ordem dos acontecimentos ou provocá-los, e percebeu que não importa quantos carros ela deixe passar ou quanto tempo fique esperando na plataforma, o menino dos olhos bonitos só aparecerá novamente quando o acaso trouxer o ônibus no horário certo de cruzar a história dos dois.